Surdos enfrentam dificuldade para atendimento em sade no Brasil 5112w
Publicado em 07/10/2019
Editoria: Sade
Para especialista, SUS oferece servio de mais qualidade a pacientes
Deixar de ir ao mdico para consultas de rotina ou em caso de dor parece algo impensvel. Entretanto, essa a realidade de muitas pessoas surdas ou com deficincia auditiva.
Surda, a professora de Lngua Brasileira de Sinais (Libras) Sylvia Grespan, da Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo, assume que evita o consultrio mdico, por julgar que os profissionais no esto preparados para atend-la da forma adequada. Ter de escrever ou depender de algum que descreva ao mdico os sintomas que ela sente e compartilhe partes relevantes do seu histrico de sade , para ela, um incmodo.
"Dizem que os surdos no procuram mdico. Eu, Sylvia, no procuro, porque j sei que no vou ter uma comunicao efetiva. Ento, no me sinto confortvel, no tenho conforto lingustico de conversar com um mdico", diz, acrescentando que pessoas j relataram a ela casos em que foram repreendidas pelo mdico por utilizarem o celular para tentar melhorar a comunicao durante a consulta. " nosso direito ter um atendimento eficaz e efetivo. J estamos no sculo 21 e at hoje a sociedade no est pronta pra receber o surdo?"
De acordo com a Pesquisa Nacional de Sade (PNS) 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), cerca de 2,2 milhes de pessoas declararam ter deficincia auditiva. O grupo representa 1,1% da populao brasileira.
Sylvia conta que, certa vez, ficou internada e se surpreendeu com as marcaes no cho do hospital onde deu entrada. "Eu achei legal, porque era [um recurso] visual, e perguntei &39;Por que colorido&39;?. Me disseram: &39;Porque a maioria nesse municpio analfabeta&39;. T vendo? Eles nem pensaram no surdo, e sim nas pessoas que no sabem ler nem escrever."
A nica exceo s experincias desagradveis, afirma, ocorreu h dois anos, quando operou a vescula e ficou na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], por um ms. Sem estar vontade para pedir que sua me, j idosa, a acompanhasse, teve uma surpresa. "Eu me senti bem, porque ali todo mundo sabia Libras. Eu me senti muito feliz, porque eles eram meus ex-alunos."
Libras
Rio de Janeiro - Traduo em Libras com encenao de temtica inclusiva no lanamento de mais uma turma do projeto Agentes de Promoo da ibilidade, na biblioteca da Rocinha (Fernando Frazo/Agncia Brasil)
Traduo em Libras durante encenao no Rio de Janeiro - Fernando Frazo/Arquivo Agncia Brasil
Na avaliao da professora, que ministra aulas de Libras para alunos de fonoaudiologia e medicina e j formou, em trs anos, 400 alunos, o curso no resolve o problema, isoladamente. "No s o curso de Libras que importante. Tambm tem que saber como explicar para o surdo", ressalta.
De acordo com a mdica veterinria Alyne Pacfico, o vocabulrio de Libras na rea de sade ainda muito recente e os profissionais devem sempre coloc-lo em prtica para no perder o aprendizado. "No basta o nvel bsico, porque um idioma", afirma, destacando que, como qualquer idioma, a Libras est sujeita a mudanas constantes.
Tambm professora de Libras, Alyne fez um levantamento com idosos surdos sobre a maior dificuldade enfrentada na rea de comunicao. O resultado, obtido em 2016 quando ela cursava o mestrado em gerontologia, foi unnime: o atendimento na rea de sade.
"Fiz uma entrevista perguntando quais eram os principais problemas com relao a sade, educao e incluso social e 100% das pessoas consultadas disseram que o maior problema era na sade, porque na educao tm intrpretes, auxiliares, mas na sade dependiam 100% de uma pessoa intrprete ou de algum da famlia", comenta.
Alyne acrescenta que, para ela, o Sistema nico de Sade "est frente" quanto qualidade do servio oferecido a esse pblico. "Os rgos pblicos esto buscando a capacitao [em Libras]", destaca.
Polticas pblicas
A fonoaudiloga Beatriz de Castro, da Diviso de Educao e Reabilitao dos Distrbios da Comunicao (Derdic), menciona que 30% das crianas surdas ou com deficincia auditiva tm outras demandas de sade, alm da relacionada audio. Alm disso, 98% dos surdos tm pais ouvintes, o que, geralmente, faz com que no tenham contato com pessoas fluentes em Libras.
O contexto, avalia a fonoaudiloga, requer uma poltica pblica "mltipla". "At que ponto a gente consegue que eles fiquem fluentes to rpido quanto precisam, se nunca conviveram na comunidade? At que ponto tenho comunidades disponveis, nesse Brasil enorme, que tenham interlocutores que vo fazer Libras? Ento, difcil de um jeito ou do outro. Portanto, estratgias inclusivas so uma necessidade em polticas pblicas que atendam a essa diversidade", afirma.
Com vasta vivncia ao lado de surtos, Beatriz afirma que essa populao submestimada intelectualmente". "A pessoa, porque se trata de um surdo, comea a falar devagar e fica com pena. Ele subestimado intelectualmente, porque a comunicao um valor muito importante para o ser humano. Quando tem qualquer desvio de comunicao, imediatamente a pessoa subestimada, do ponto de vista cognitivo.
Violao de direitos
Com frequncia, afirma Alyne Pacfico, as pessoas acometidas por surdez ou deficincia auditiva acabam sendo privadas de informaes fundamentais a respeito do seu estado de sade. Tambm comum que sejam foradas a concordar com a istrao de medicamentos, sem que saibam exatamente qual substncia est sendo prescrita ou at mesmo injetada em seus corpos.
Em muitas ocasies, no conseguem ter a oportunidade de expressar os sintomas fsicos que sentem, condio que, frisa Alyne, os torna "refns". O debate, portanto, permeia o campo da tica.
Quando se trata de sade mental, a situao idntica. De acordo com ela, muitas pessoas com surdez ou deficincia auditiva procuram um psiclogo depois de desenvolverem depresso causada pelo isolamento social. No raro, h falta de comunicao dentro da prpria casa em que vivem. "Hoje em dia, se tivermos cinco psiclogos formados em Libras, em Braslia, muito. E, se acharmos um, ele ainda cobra um absurdo pela consulta, porque um profissional muito requisitado. s vezes, tambm tem a questo do sigilo. Entra um intrprete e o surdo no quer abrir o caso dele com algum que chegou ali."
Um caso que ilustra bem as implicaes da falta de preparo no atendimento de sade relatado pela professora Sylvia Grespan. "J tive experincias com surdo psicopata [com transtorno de personalidade dissocial psicoptica], que agredia e tentou se matar. A intrprete no conseguia interpretar, ela comeou a chorar, comeou a ficar angustiada naquele atendimento, porque ela no estava acostumada."
Telemedicina e aplicativos
Quando o tema tecnologia em prol das pessoas surdas ou com deficincia auditiva, as opinies se dividem. Ao contrrio de Alyne, Sylvia afirma que os aplicativos de celular e as vdeo-chamadas no propiciam um atendimento apropriado. A pedagoga argumenta que esse modelo traz consigo um nus, que o pagamento por um servio de internet que permita que as consultas por vdeo e os aplicativos rodem bem.
Sylvia lista algumas medidas que considera fundamentais: a oferta de Libras como disciplina obrigatria nos cursos da rea de sade, com uma carga horria extensa, "e no somente de 40 horas"; a contratao de intrpretes em hospitais; e o lanamento de todas as pginas online do SUS em Libras, permitindo que o contedo chegue a todos.
A professora defende ainda que a Agncia Nacional de Telecomunicaes (Anatel) oferte pacotes de internet para pessoas surdas ou com deficincia auditiva com preos mais veis.
FONTE: Agncia Brasil